domingo, 12 de fevereiro de 2012

O aborto e as pesquisas com células-tronco (K.Stumpf)

     Ao longo da história da humanidade, houve centenas de legislações mundiais que proibiram a prática do aborto. Contudo, nem por isso as mulheres deixaram de abortar, quando entendiam necessário. O aborto, historicamente, é relatado em antigas civilizações e, também, em tribos indígenas de todo o mundo.
 
     As sanções acerca dessa prática decorrem da bíblia, fazendo parte do código moral intensamente pregado pelo cristianismo. No entendimento cristão, um embrião já possui “alma” e, por isso, só quem tem o poder de cessar sua formação é Deus.
 
     Em que pese essa concepção, muitos países desenvolvidos, em sua maioria situados no continente europeu, superaram as barreiras dogmáticas/religiosas e passaram a legislar à favor do aborto, tratando-o como questão atinente à saúde feminina e, com isso, beneficiando milhares de europeias que sofriam com gestação indesejável e/ou problemática.
 
     Nesses países, prevaleceu a premissa de que o assunto é exclusivamente de interesse da saúde pública, logo, do Estado, que é Laico, não de instituições religiosas. Estas últimas, inclusive, deveriam estar adstritas à esfera da metafísica, evitando-se o risco de manipulação da sociedade baseada em meras especulações - que se situam no campo do subjetivismo.
Ademais, o aborto tratado como questão de saúde pública previne que mulheres procurem por clínicas clandestinas, ou ainda, provoquem abortos - considerando-se que ambas as ações retrotranscritas são fatores de mortalidade feminina elevada.
 
     Nos países contrários ao aborto, o apelo cristão, sobretudo da ICAR (Igreja Católica Apostólica Romana), sobrepôs o interesse das mulheres, seguindo a posição bíblica de que o homem deve garantir sua descendência - em outras palavras - deve procriar. Isso explica a motivação da luta anti-aborto. Os avanços tecnológicos na órbita das técnicas reprodutivas tornaram as mulheres capazes de garantir sua descendência sem a presença da figura paterna e, destarte, digamos que isso é o suficiente para causar pânico nos advogados da bíblia. Para a ICAR, o aborto é um caso de excomunhão latae sententiae (automática) e, segundo a doutrina católica, a pessoa estaria condenada ao inferno.
 
     Com essas ideias conservadoras, os Estados Unidos, por exemplo, encontram resistência na legalização do aborto em algumas de suas províncias. Na América Latina não é diferente, pois o movimento pró-aborto tem histórico recente, tendo iniciado-se tardiamente, em relação aos países desenvolvidos. O Código Penal Brasileiro, verbis gratia, prescreve em seu artigo 128 dois casos excepcionais para a realização de aborto: Aborto necessário, se não houver outro meio de salvar a vida da gestante, e aborto em caso de gravidez decorrente de estupro. Nessas circunstancias, a ilicitude é afastada, operando-se a descriminalização da conduta (aborto).

     Consoante aos dados do Ministério da Saúde do Brasil¹, no ano de 2006 cerca de 220 mil mulheres foram internadas para a realização de curetagens pós-aborto, em virtude de complicações causadas por abortamentos espontâneos e provocados. Consequência disso, o governo gastou em torno de 33 milhões de reais somente naquele ano. Ainda, segundo estudos, o aborto é a quarta causa de mortalidade materna².

     Em 1995, na Quarta Conferência Mundial sobre as Mulheres, em um trecho da Declaração de Pequim, formalizada naquele ato, constava:


“(…) estamos convencidos de que o reconhecimento explícito e a reafirmação dos direitos de todas as mulheres de controlar todos os aspectos de sua saúde, em particular sua própria fertilidade, é básico para seu fortalecimento".³

     Foi na conferência supra que os representantes políticos brasileiros comprometeram-se em tratar o aborto como saúde pública, deixando-se à margem as interpretações religiosas.As estatísticas revelaram a ineficácia da criminalização do aborto no Brasil, ao mesmo passo em que retratam a inadequação social desse delito. É preciso, com urgência, descriminalizar a prática abortiva, e estruturar os hospitais para que possam atender as gestantes de forma que elas deixem de realizar abortos clandestinamente – o que, de fato, é um risco eminente à saúde da mulher.

     Deve-se abandonar as interpretações religiosas que circundam o tema, para então pensar unicamente na saúde física e psíquica feminina. Cumpre lembrar que desde o ano de 2004 as mulheres estão movimentando a campanha pró-aborto, com o lema: “Aborto, as mulheres decidem, a sociedade respeita, o Estado garante”(4).

     Para melhor compreensão do fato de haver tanta resistência religiosa acerca da prática abortiva, devemos conhecer a visão metafísica que a doutrina cristã impõe sobre o embrião. Para eles, como já citado, o embrião possui uma alma. Teologicamente, não há consenso sobre o exato instante em que essa alma seria inserida no embrião. A corrente cristã majoritária defende que o espírito se une ao embrião no mesmo instante em que o espermatozóide penetra a parede do óvulo, ou seja, no ato da fecundação. Não há qualquer ensinamento bíblico sobre o momento em que a alma se insere ao corpo, portanto, todos os dogmas inerentes ao assunto têm origem na mente de teólogos e líderes religiosos, restando aos fiéis a incumbência de crer/acreditar.

     Um dos paradoxos dessa visão religiosa consiste no fato de que 2/3 a ¾ dos óvulos chegam a ser fecundados, mas não conseguem se fixar no útero. A questão é: se foram fecundados e, desta forma, receberam espírito, logo a perda desses óvulos infertilizados pode ser entendida como milhões de abortos espontâneos? Outra dúvida é: qual o destino dessas milhares de almas que já estavam inseridas nos óvulos fecundados? Este número de espíritos, inclusive, ultrapassaria milhões de vezes o número de habitantes de nosso planeta.

     Outra questão mal explicada pelo cristianismo é a dos gêmeos monozigóticos (idênticos). Estes são formados por um único espermatozoide, e se dividem em duas células completas, após a fecundação. Faz-se necessário, desta forma, uma explicação teológica convincente acerca de como ocorre a divisão da alma, que se supõe, já estava inserida, pois já havia ocorrido a fecundação. Já nos gêmeos xifópagos (siameses), a célula embrionária não chega a se dividir completamente, resultando na concepção de gêmeos unidos por alguma parte do corpo. Estes últimos possuem apenas uma alma? Ou são como os gêmeos idênticos, possuindo cada um a sua? Creio que não poderiam usufruir de uma única alma, pois resultaria em novo paradoxo para a teologia: A questão do livre arbítrio. Por exemplo, se um dos gêmeos cometesse pecados, o outro seria condenado ao inferno juntamente.

     Contrapondo a ótica acima, parcela minoritária da doutrina cristã defende que a alma se insere no embrião, mas somente atinge seu estágio padrão quando em conjunto com o cérebro, ou seja, após a formação encefálica do nascituro. Esta ideia nos dá o entendimento de que a alma necessita do cérebro para ser completa. Todavia, exsurgem novas dúvidas, como por exemplo: Após a morte, quando ocorreria a separação da alma não-física do corpo físico, como poderia essa alma sofrer com o castigo do inferno ou desfrutar da vida eterna no paraíso sem estar agindo em conjunto com o cérebro?

     Na visão científica, nos três primeiros dias de existência, i.é., após a fecundação, um embrião é, em verdade, um conjunto de células indiferenciadas, que têm potencial para mutações. Este conjunto é denominado blastocisto, e constitui as células-tronco embrionárias. Logo, devemos entender que as células-tronco são extraídas do blastocisto, e não propriamente de um embrião. Para se ter uma ideia, o cérebro de uma mosca é formado de mais de 100 mil blastocistos e, apesar disso, nenhum cristão defende a preservação da vida das moscas (5).

     As células-tronco representam para a medicina a esperança de cura para diversas doenças e traumas, visto que elas têm potencial para compor tecidos danificados. Não obstante, as pesquisas com células-tronco encontram resistência da moral-religiosa em todo o mundo – essa moral que religiosos conservadores tentam rotular como ética. Outra questão que fica atrofiada pela religiosidade é a do aborto em casos de anencefalia. A anencefalia é uma patologia letal. Não há qualquer perspectiva devida extra-uterina, nem tratamento paliativo, para um feto com anencefalia. Trata-se da má-formação do tubo neural, ocorrida durante a formação embrionária, e que resulta na ausência de parte do encéfalo e da calota craniana. O diagnóstico se dá a partir da 12ª semana de gestação.

     Em 20 de outubro de 2004, foi cassada no STF a liminar que autorizava a interrupção da gestação de fetos anencéfalos e cessava com o trauma das gestantes. Na ocasião, o voto do Ministro Antonio Cezar Peluso foi paradigmático, pois ilustrou o posicionamento da maior parte dos ministros do STF:

“A integridade física e biológica da vida intra-uterina também está em jogo. Depois, o sofrimento em si não é alguma coisa que degrade a dignidade humana; é elemento inerente à vida humana. O remorso também é forma de sofrimento… Nem quero discorrer sobre o aspecto moral e ético – não me interessa – de como o sofrimento pode, em certas circunstâncias, até engrandecer pessoas(…) (Peluso, 2004).

     Não resta dúvidas de que na decisão exposta há forte influência da moral-cristã, presente inclusive na história política e social deste país. No entanto, os nossos juristas esquecem a premissa maior contida na Constituição, de que o Brasil é um Estado-laico, no qual não deve haver intervenção religiosa nas questões do Estado, tampouco em decisões que dizem respeito à coletividade. Mas, obviamente, nossos políticos assumem o poder com suas bases míticas enraizadas, e em decorrência disso acabam por representar interesses de suas comunidades religiosas, quando deveriam representar a sociedade como um todo e privar pelo bem-estar das pessoas, não pela espiritualidade de uns e outros.

     Entendo que, para se falar em direito à vida, deve inicialmente haver potencialidade para a vida. Um anencéfalo não tem, pois tal distúrbio é irreversível, sendo que o bebê está condenado a nascer para passar por uma situação agonizante e em breve morrer. Isto, sem considerarmos o sofrimento de uma mãe, e todos os transtornos físicos e psicológicos que enfrenta numa gravidez que não logrará êxito. Entretanto, de acordo com Peluso, "o sofrimento pode engrandecer uma pessoa." Isto nos remete à filosofia de Cristo, da angústia e do sofrimento como pressupostos para uma alma enaltecida.

     Algumas gestantes chegaram a ingressar judicialmente em busca de autorização para antecipar o parto de feto anencefálico. Aquelas que conseguiram autorização judicial, se depararam com novo impedimento, causado pela intervenção de sacerdotes cristãos que ingressaram com habeas corpus, representando o feto. Contudo, nem todos os Ministros do STF são contra o aborto. Vejamos um trecho de um voto do Ministro Celso de Mello, contrário ao habeas corpus impetrado por um sacerdote, com objetivo de impedir a interrupção de uma gestação de feto anencéfalo:


“(...) o dogmatismo religioso, e digo isso porque a decisão que motivou esse habeas corpus foi provocada - e não questiono as razões do impetrante - mas foi provocada por um sacerdote católico, que postulou a adoção de medida diametralmente oposta àquela perseguida por essa jovem gestante. (...) o dogmatismo religioso revela-se tão opressivo à liberdade das pessoas quanto a intolerância do Estado, pois ambos constituem meio de autoritária restrição à esfera de livre arbítrio e de auto-determinação das pessoas, que hão de ser essencialmente livres na avaliação de questões pertinentes ao âmbito de seu foro íntimo, notadamente em temas do direito que assiste à mulher, seja ao controle da sua própria sexualidade, e aí surge o tema dos direitos reprodutivos, seja sobre a matéria que confere o controle sobre a sua própria fecundidade.” (Mello, 2004, HC nº 84025-6)


     O habeas em voga foi julgado prejudicado, visto a ocorrência de fato superveniente, quando da morte do feto antes da decisão da côrte. Vejamos também o voto relatado na suprema corte pelo Ministro Joaquim Barbosa, consoante ao habeas corpus supramencionado:


“(…) dizer-se criminosa a conduta abortiva, para a conduta em tela, leva ao entendimento de que a gestante cujo feto seja portador de anencefalia grave e incompatível com a vida extra-uterina está obrigada a manter a gestação. Esse entendimento não me parece razoável em comparação com as hipóteses já elencadas na legislação como excludente da ilicitude de aborto, principalmente porque estas se referem a interrupção de gestação de feto cuja vida extra-uterina é plenamente viável. A manutenção de uma gestação cujo feto é portador de anencefalia afeta gravemente o direito à vida digna da mulher. Este tabu ainda não foi vencido no Brasil porque encontra como obstáculo a forte influência do catolicismo na estrutura legal do país. Enquanto isso, muitas mulheres são submetidas à intensa tortura e ao longo sofrimento do período de gestação num caso de anencefalia, quando estão cientes de que geram uma criança que tão breve morrerá.” (Barbosa, 2004, HC 84025-6 RJ, DJ 25/06/2004, Ementário nº 2157-2, p. 354).


     Todavia, não é somente em questões relativas ao aborto que encontramos a religião como obstáculo. O jornal americano The New York Times em sua edição de 30 de dezembro de 2005 publicou uma notícia sobre a proibição, na época, de uma vacina contra o vírus HPV nos EUA. O texto trazia como título “Forbidden Vaccine”, e explicava os motivos da proibição do uso do recurso médico. A ciência, outra vez, encontrava em seu caminho o grande obstáculo chamado religião. Houve intensa resistência à aprovação da vacina por parte dos membros do governo que eram conservadores cristãos, sob a alegação de que o vírus HPV servia para evitar que jovens e adolescentes tivessem relações sexuais antes do casamento. Em outras palavras, o vírus serviria como castigo e como exemplo moral de que não se deve praticar sexo antes do matrimônio.

     O problema é que de acordo com o Center for Desease Control (Centro de Controle de Doenças), no mundo todo, c. 200 mil mulheres morrem todo ano de câncer cervical, doença causada pelo vírus HPV ou papilomavírus humano. Notamos aqui, mais uma vez, a ignorância causada pela fé, que entrava a ciência e retarda a expectativa de uma vida melhor para a humanidade.

     Outro avanço científico que ainda encontra resistência do cristianismo, inclusive no Brasil, diz respeito ao estudo com células-tronco, como foi comentado alhures. Recapitulando, estas células são extraídas de embriões (com três dias de idade, em tubos de ensaio), e com elas é possível reproduzir qualquer parte do tecido humano. Seria possível, por exemplo, avançar significativamente em busca da cura de tumores malignos. Entretanto, os cristãos conservadores estão mais preocupados com a "alma dos embriões de três dias de idade" do que com as milhares de pessoas que aguardam com esperança por avanços na medicina que possibilitem curas. Para os religiosos, a alma de um embrião é pura, sem pecados, enquanto que aqueles que morrem de doenças certamente já possuem pecados e, portanto, são almas impuras destinadas a queimar no inferno. Aliás, é complicado entender como algo imaterial (a alma) possa queimar no fogo.

     Resta-nos saber se haverá resistência religiosa quando cientistas lograrem êxito na formulação de uma vacina contra a Aids. Se seguirem a “premissa do HPV”, já podemos antever o posicionamento cristão no debate. Em se tratando da Aids, doença que mata homens e mulheres em todo o planeta, é de grande valia conhecermos o trabalho dos missionários cristãos no continente africano, o mais atingido pela doença. Sabe-se que eles pregam, acima de tudo, os valores bíblicos, obviamente. Dessa feita, ensinam os africanos a não utilizarem preservativos, explicando que tal ação lhes permitirá a salvação junto ao Senhor. Muitos desses missionários nem imaginam o mal que estão cometendo, uma vez que estão tomados pela fé religiosa e, assim, desprovidos de uma consciência humanista. Em suma, eles agem pela crença e não pela razão. Basta analisarmos a disseminação da Aids na maioria dos países africanos para compreendermos a força destrutiva da palavra divina - ou, ainda, outros problemas como, v.g., o aquecimento global, que é tratado com despreocupação e indiferença por muitos doutrinadores cristãos, haja vista que pregam e aguardam ansiosos pelo apocalipse. Para muitos fiéis fervorosos, uma catástrofe mundial seria recebida com muita euforia, como o dia prometido pelo Senhor. Para nós, realistas, isto é auto-destruição, ignorância!

Notas:

1. Entrevista com o Ministro José Temporão. Folha de São Paulo, 09/04/2007.
2. Monteiro, Mario F. G. & Leila Adesse. A Magnitude do aborto no Brasil: Uma análise dos resultados de pesquisa no Brasil. Instituto de Medicina Social do Rio de Janeiro: 2007.
3. Link: http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/onu/doc/pequim95.htm
4. www.articulacaodemulheres.org.br
5. Sam Harris utiliza este exemplo no livro: HARRIS, Sam. Carta a Uma Nação Cristã. Companhia das Letras, 2008.